segunda-feira, 9 de março de 2009

Caleidoscópio (parte 2)

(Reminiscências / continuação)
Por mais que houvessem se preparado, a hora chegara rápido e sua mentes não conseguiam acompanhar a velocidade dos fatos. Guerrear, mesmo que trazendo a vantagem de planejarem suas ações, era-lhes uma cena insólita.
Seis homens foram designados para organizar a defesa da Usina já dominada, estando Mário Ávila entre eles, junto com Brito Velho e José Gay Cunha, que apesar de ser um dos mais jovens, ficara como responsável pelo grupo devido a sua experiência militar anterior. Brito e Mário, ao escutarem tiros vindos de muito perto, posicionaram-se atrás de uma cerca de grossas tábuas que lhes pareceu segura.
-Saiam daí, rápido! gritou José. Deitem-se atrás do carvão! Tábuas não resistem às balas. Venham logo!
Na verdade não os havia convencido, mas sabendo de sua vivência da Escola Militar, acabaram obedecendo. Não houve tempo para mais que se agacharem.
Uma rajada destruiu as tábuas aonde, até então, se resguardavam. Mário Ávila estava pálido e sem ação. Quase tremia. Olhou para Gay Cunha e falou-lhe:
-Você salvou nossas vidas. Tenha certeza de que, se escaparmos desta, lhe serei grato para sempre.
Aos poucos os tiros ficaram menos freqüentes. Ambulâncias começavam a circular com muito ruído. Uma patrulha veio fazer ligação com o grupo.
Francisco Brochado, outro companheiro muito próximo, fora gravemente ferido e estava num hospital. Krieger e Davi, este irmão de Gay Cunha, estavam bem, assim como Antônio, Luiz e José, filhos do General. O último ponto a entregar-se às forças da Revolução foi o 7º. BC, comandado por um Coronel, cunhado do próprio Flores da Cunha. Já madrugada, um pelotão da Brigada Militar veio rendê-los. A primeira missão estava cumprida. Na Rua Caldas Junior, ao lado do Grande Hotel, estava estacionado o automóvel do General Flores e sentados lado a lado, ele e o Dr. Osvaldo Aranha, junto com um dos chefes do ataque ao Quartel General.
Apesar da hora avançada muito povo circulava pelas ruas, principalmente na frente da sede do Diário de Notícias, aonde haviam afixado notícias de todo o país, informando que a Revolução ganhava terreno e vencia, exceto no Rio de Janeiro e São Paulo, lugares em que o Governo conseguia manter suas posições.
No Palácio do Governo, Getúlio Vargas passaria a noite reunido com o General Flores da Cunha, Osvaldo Aranha, Maurício Cardoso e com o General Góes Monteiro, líderes do movimento, planejando os próximos passos.

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O velho Ávila fora pego de surpresa pelas notícias e tão logo lhe foi possível, viajou para Porto Alegre, encontrando Mário na casa de Carla, cuia na mão, sorvendo chimarrão com o Coronel Figueiredo.
-Tu queres me matar do coração? falou depois de abraçar o filho, naquele seu jeito distante e seco, que mais dava a impressão de que tinham estado juntos até há pouco. Tua mãe está a chorar desde que soube. Não tínhamos como te localizar rápido. Está tudo um caos. Nas estradas, no campo, nas cidades, tudo que se vê são homens fardados marchando para cá. Não sei se vai haver lugar em Porto Alegre para reunir toda essa gente.
-Eu já tinha falado isso para o Mário, seu Ávila, mas ele só pensa nessa Revolução e nos amigos que se engajaram com ele nessa aventura.
-Minha filha, falou o Coronel Figueiredo, isto não é uma aventura. Realmente estamos salvando o país. E a hora é agora. Falei muito com o Flores e bem sei que vamos conseguir. Nos próximos dias, saem nossas tropas para enfrentar os paulistas. Ali, a coisa se decide.
-Papai, bem sei o que estou fazendo. Tenho um grande grupo de amigos que estão comigo. Sou um dos mais velhos. Não tenho experiência e é verdade que quase morri logo no primeiro dia, mas agora irei até o fim. Vou escrever para mamãe e tranqüilizá-la. Me desculpem se falhei não os alertando antes. Era fundamental que trabalhássemos com o fator surpresa.
-Mário, meu filho, você já podia estar casado e ser pai. Pense bem no que vai fazer. Temos um patrimônio imenso em jogo.
-Já fiz papai. Não vou voltar atrás. Tão logo isto tudo termine, Carla e eu vamos nos casar. Quanto a nosso patrimônio, fique tranqüilo. Tenho me preparado para o momento em que vá precisar de mim.
E, encarando o velho Ávila, falou com firmeza:
-Até lá, estarei pronto para não trair suas expectativas a meu respeito. Não sou mais um menino, isto sei há muito. Talvez o senhor e mamãe não tenham se convencido ou percebido ainda.

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No Rio de Janeiro, uma Junta Militar derrubara o Presidente Washington Luiz. O General Góes Monteiro comandava o Quartel General da Revolução sediado em Curitiba, e Osvaldo Aranha já estava no Rio para tratar da passagem do Governo para Getúlio Vargas. Depois de passar por São Paulo, onde tiveram do povo uma receptividade carinhosa, e sem ter participado de qualquer derramamento de sangue, os comandados do General Flores da Cunha chegavam ao Rio de Janeiro no dia 28 de outubro, acampando nas instalações do Derby. Osvaldo Aranha soubera sobrepujar os obstáculos colocados pela Junta Militar durante as negociações, e Getúlio Vargas assumia a Presidência da República.
Em 4 de novembro as tropas gaúchas embarcavam no navio que as deixaria em Porto Alegre no dia l0. Os pensamentos da tropa vagavam mais que as ondas a rodeá-la. Estava começando uma nova era em nosso país. Na verdade, algo perturbava a todos. Porque um grupo que servira de vanguarda perante a possibilidade de uma luta árdua e demorada, voltava agora tão rapidamente? Porque, mantidos à distância dos fatos, não eram sequer comunicados do que ocorrera?
Flores da Cunha não era homem de se deixar enganar ou iludir. Franco e acima de tudo leal a Getúlio, a exemplo de outros elementos fundamentais na Revolução. Considerado, entretanto, muito fogoso nas decisões, difícil de abrir mão de seus princípios, podia causar perturbações nas negociações. E estas, só os componentes da Junta Militar e Getúlio Vargas sabiam sob que condições tinham sido acertadas.
As vozes da Aliança Liberal foram caladas e se iniciava um período de distribuição dos despojos. O General Flores da Cunha voltava para ficar no Rio Grande do Sul. Seu prêmio seria o Governo do Estado. Não percebeu ele, senão muito tempo depois, que, com isso, fora afastado do centro das decisões nacionais.
Getúlio representava para o mundo o equilíbrio necessário para tranqüilizar, tanto os interesses da Inglaterra, quanto dos Estados Unidos. Dificilmente tomaria uma atitude radical. Era preciso desarmar o povo. Esse povo, do qual alguns homens haviam tombado, lutando pelo que julgavam ser a legalidade, e outros, pelos ideais superiores da liberdade. O poder do Brasil mudava de mãos.
Em abril de l93l, em festa que ficou registrada como uma das maiores já realizadas em Livramento, Mário Ávila e Carla Figueiredo se casam. Entre os presentes, além do General Flores da Cunha, seus irmãos João e Chico, radicados na cidade, seus filhos, seus sobrinhos José e Davi, os Krieger, os Silveira e, representando o Presidente Vargas, seu irmão Benjamim.
Muita gente de posses, da capital e da fronteira. O velho Ávila dava uma clara demonstração de seu prestígio e o fazia em grande forma. Do Diário de Notícias de Porto Alegre ao Diário de Pernambuco em Recife, as bodas foram noticiadas. Mário Ávila ganhava o status de homem sério, e, ao final da festa, antes de retirar-se com a agora esposa, fez questão de cumprimentar a cada um dos ex-companheiros de luta. Ao ficar frente a frente com José Gay Cunha, falou para Carla:
-Este é meu anjo da guarda. Agradeça a ele por estarmos juntos. Ele é um forte. Bom companheiro, amigo, um guri dos melhores. E pensar que sou tão mais velho.
Quase dez anos os separavam. Mas suas vivências encurtavam esta distância.
-Mário, parabéns. E conte comigo sempre, respondeu José.
-Minha vida mudará um pouco a partir de agora. Provavelmente vamos nos ver cada vez menos. Sei que você volta para a Escola Militar no Rio de Janeiro, mas não deixe de dar notícias.
Enquanto os dois amigos se abraçavam, Carla aproveitou para dizer:
-Acredite José. Para o Mário você é como que um herói. Ele fala muito de sua coragem, inteligência e amizade. Você era a pessoa que eu mais tinha curiosidade de conhecer de todos quantos o Mário conviveu na Revolução.
E erguendo-se na ponta dos pés, alto e forte que era José, beijou-o nas duas faces. Afastaram-se, cada um para seu destino.
Os primeiros anos de casamento passaram tranqüilos, apesar dos sobressaltos ocasionais de l932, quando, por conta da fidelidade do General Flores a Getúlio, o Rio Grande do Sul, mais uma vez, se engajava em réfregas, desta feita para acabar com a Insurreição Constitucionalista.
Em Portugal, uma brutal onda de desemprego atingia o país, conseqüência da legislação protecionista aprovada na Inglaterra, restringindo o livre comércio. Em fevereiro de l933, enquanto o prédio do Parlamento Alemão era incendiado pelos nazistas e Hitler, recém nomeado Chanceler de seu país, proclamava o estado de emergência, atribuindo aos comunistas a autoria do atentado, nascia em Livramento o primeiro filho do casal Ávila, que recebeu o nome de Márcio.
Na fazenda a rotina do dia-a-dia havia mudado bastante. Carla, impedida de lecionar em uma escola, o fazia para os pequenos filhos dos peões e em dias especiais, à noite, para os próprios pais da meninada. Era sua forma, sempre gentil e silenciosa, de mostrar que podia colaborar com o marido.
O velho Ávila e a esposa, depois de tantos anos exilados no interior, tinham resolvido aproveitar a vida um pouco mais. Deixaram Mário responsável pela administração, o que, na verdade, fazia de forma mais eficiente e evoluída que seu pai. Os empregados foram ganhando um tratamento bem mais afável e condições de moradia menos desfavoráveis.
Alguns poucos, mais antigos, que com Mário, ainda menino, haviam convivido, passaram a ser melhor aproveitados, sendo sempre consultados em casos de dificuldades, o que lhes dera um sentimento de maior utilidade e respeito. Sem dúvida, havia mais prazer e alegria, mais cordialidade no tratamento, entre todos os que conviviam na fazenda de Livramento.
Carla dava o toque sutil da delicadeza em tudo que a rodeava e a cada fato em que viesse a se envolver. Era a palavra e o gesto de consolo. Era o olhar de afeto para a mulher do peão que dera a luz, por vezes a uma criança frágil. E que, se preciso fosse, até a medicava.
Ao fim do dia, estava sempre a esperar por Mário, o banho pronto e a roupa separada, afinal era ele quem se envolvia com todo tipo de problema e, ao chegar, mais que todos, necessitava descansar o corpo e a mente.
Manutenção, rebanhos, vacinas, adubo, rações, roubo de gado, discussão de preços com os compradores, a luta com a concorrência nem sempre leal, coisas que Carla se acostumara a vê-lo tratar mantendo o alto nível e seu bom humor que nada parecia abalar.
E do pequeno Márcio, Mário Ávila sabia tudo por ela, nas falas tranqüilas de depois do jantar quando, se fizesse frio, sentavam perto da lareira. Revelara-se uma perfeita dona de casa. Assimilara a vida da fazenda com rapidez e mostrando uma maturidade inesperada, convivia com o isolamento forçado, longe da cidade, sem se perturbar ou transparecer qualquer tipo de desgosto. Amava o marido e fazia por merecer seu amor.
O Brasil caminhava para uma aparente fase de amadurecimento político e democrático. A Assembléia Constituinte promulgara nova Constituição e elegera Getúlio Vargas Presidente da República, legitimando, portanto, sua posição no cargo. Os legislativos estaduais, eleitos por voto direto, passam a escolher seus Governadores e é criada a Hora do Brasil, programa oficial, transmitido no mesmo horário por todas as emissoras de rádio do país.
A família Ávila aumenta de novo, em abril de l935, com o nascimento de Lauro, robusto mais do que o esperado, com três quilos e oitocentas gramas. Carla sofre um pouco no parto, realizado com ajuda de uma parteira no quarto do casal. Dois dias depois seu estado se agrava e Mário é obrigado a levá-la até Livramento para buscar apoio médico. Na verdade sofrera retenção de parte da placenta, o que lhe gerara um princípio de infecção. Recuperada, retornam ao lar.
É uma quarta-feira, oito e meia da noite e Mário manda aprontar seu cavalo para sair, como o faz sempre nesse dia. Vai reunir-se com alguns amigos para jogar e espairecer um pouco. Desta vez, Carla ainda abatida e frágil protesta:
-Meu bem, hoje tu não podes ficar comigo? e o olha com carinho.
-Fica tranqüila. Vou rápido. Voltarei mais cedo. Não me demoro. Prometo.
Agacha-se sobre ela, que está deitada, com Lauro a seu lado, beija-a com verdadeiro afeição e sai. Três horas mais tarde está de volta. Não acende as luzes pensando em não acordá-la. Carla, entretanto, não dorme ainda.
-Então, foi tudo bem? pergunta-lhe.
-Sim, tudo bem. Descanse. Vou trocar de roupa e me deitar também.
Carla preocupa-se com a expressão do marido que está contrariada. Conhece bem suas reações. Algo ocorreu que o fez voltar ressentido.
-Perdeste muito no jogo?
-Não meu amor, o de sempre. Serviu para me divertir. Estou cansado, apenas isso.
Deita-se ao lado da mulher, enlaça-a com o braço sob seu pescoço e lhe dá um beijo. Depois, com a mão livre, acaricia-lhe o ventre e o rosto. Beija-a de novo e fecha os olhos. Em alguns segundos parece ter adormecido. Carla se cala não querendo atrapalhar seu sono, mas em seu íntimo fica a certeza de que as coisas não foram boas naquela noite.
O Partido Comunista, em constante esforço para firmar-se, ajuda a fundar a Aliança Nacional Libertadora. Em contrapartida, o Governo Federal apresenta proposta, aprovada pelo Congresso, que cria a Lei de Segurança Nacional, liberando plenos poderes ao executivo para reprimir qualquer atividade que seja considerada subversiva. Forçada por acontecimentos na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, nos quais fora morto um operário, ocasionando greves e passeatas que param a cidade, a polícia fecha a sede da Ação Integralista Brasileira, na verdade disfarce político de um grande grupo de radicais de direita.
Legendário e reconhecido como um líder sábio e honesto nas hostes da Escola Militar, por conta de sua fantástica marcha através do Brasil há anos atrás, Luis Carlos Prestes, clandestino desde que rompeu com Vargas, e que chefiara a coluna que protestara por todo o país, vencendo as forças legalistas de então, era o inspirador, não só no Rio de Janeiro, mas em vários outros estados do país, de movimento que planejava derrubar Getúlio Vargas, considerando-o traidor do ideal da luta de l930, agindo como ditador, sem respeitar a Constituição.
Reunindo civis e militares, o primeiro levante ocorre em Natal, aonde o Governador é deposto e os rebeldes assumem o poder Um dia depois, em Recife, os rebelados esboçam seus primeiros passos mas são imediatamente dominados pelas tropas do Governo. Sem apoio na região, em três dias, o Governo do Rio Grande do Norte volta às mãos da legalidade, com a derrota fragorosa e muitas prisões dos revolucionários.
No Rio de Janeiro, na noite de 26 para 27 de novembro, algumas unidades militares se sublevam, sendo rapidamente sufocadas pelas forças do governo. O que resta é muita destruição, mortes, e a certeza de que Vargas tivera sempre o controle da situação e das informações sobre o que ocorria no seio dos conspiradores. O comunismo assustara. Agora, com longos juros do tempo, pagaria caro.
É decretado Estado de Sítio e o país passa a viver a mais espantosa fase de repressão, levando às prisões gente de todas as atividades e de todas as faixas etárias. Não há discernimento para mostrar as garras do poder. Jovens estudantes e mulheres, inclusive grávidas, são torturados para confessarem o que nunca souberam ocorrer.
As manchetes dos jornais favoráveis ao governo citam a possibilidade de aprovação da pena de morte no Congresso, enquanto Getúlio Vargas pede a decretação do Estado de Guerra. No Rio de Janeiro, junto com Deputados e Senadores, é preso Pedro Ernesto, médico querido - que há pouco tempo ajudara a salvar a vida de Dona Darcy, esposa do Presidente - Prefeito da cidade, respeitado por todos, inclusive por seus inimigos políticos.
É, depois, condenado pelo aborto jurídico que as forças governistas criaram com o nome de Tribunal de Segurança Nacional. O Governo humilha o legislativo, impondo mortes, torturas e vexames físicos de forma arbitrária e extremamente cruel. Filinto Muller passa a fazer parte da história do Brasil. Da parte triste e suja da história.

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Entra l936 e os Ávila festejam os três anos de Márcio em reunião de família que reúne os avós maternos e paternos entre muitos convidados. Saboreiam todos um churrasco, sob o caramanchão frente à casa grande, de flores amarelas e folhas muito verdes, alamanda que Carla trouxera de Porto Alegre.
-Não sabia que tu eras capaz disso Mário. O churrasco está melhor do que os que faço. Tenho que admitir.
-Eu não sou tão bom assim Coronel. A carne é que é boa demais. Os responsáveis são estes bons peões que comigo trabalham. Eles sabem tratar o gado de forma a que ele não endureça as carnes. Sabem alimentá-lo de modo adequado.
Mário respondia ao sogro de forma verdadeira, mas o que desejava era mostrar ao pai que tinha mudado as coisas no trato com os empregados, antes tão espezinhados pelo Velho Ávila. Sabia que tio Marcelo, morto pouco depois do falecimento de seu avô, fora bem diferente de seu pai. Ainda agora, aqueles que o haviam conhecido falavam dele com saudades.
Era alegre, desprendido, gostava de contar histórias que assustavam os peões. Todos sabiam que não participara de muito do que dizia, mas respeitavam sua criatividade sadia e sua capacidade de resolver problemas, principalmente quando estes surgiam entre os peões. E o fazia sem que o Velho Ávila ficasse sabendo. Tinha consciência de que, se isto ocorresse, as coisas pioravam.
O Velho Ávila era duro nos julgamentos. Não discutia nem questionava. Não ouvia nem argumentava. Demitia ao menor sinal de desavenças. Tio Marcelo vivera pouco. Casara perto dos quarenta anos e quando o pai morreu, não chegou a desfrutar da herança. Fora encontrado morto, dois tiros nas costas, nunca esclarecidos.
Mário era ainda muito pequeno. Pouco lembrava, além da atenção e do carinho que o tio lhe devotara. Dele ganhava presentes, sempre acompanhados de uma palavra amiga. Comentava-se, entre alguns desafetos do Velho Ávila, que ele mandara matar o irmão por quem nutria profundo rancor e despeito. Nunca aprendera ou fizera qualquer esforço para entendê-lo.
Não assimilava a postura descontraída do irmão. No fundo, o admirava pela simplicidade e inteligência com que sobrepujava qualquer problema. Mas isso só fizera que, com o passar do tempo e a identificação que o irmão desenvolvera com o pai, fosse se afastando cada vez mais. Marcelo nunca percebeu isso, absorto que vivia em meio a seus projetos e atribuições. E partiu, talvez sem sabê-lo. Não agradava a Mário pensar nisso. Olhou para o pai que, sentado, demonstrava cansaço.
-E aí Velho? Gostando também?
-Tu bem sabes que já há algum tempo como pouco churrasco. Me é muito pesado para a digestão. Mas está bom sim.
Sempre fora assim. O Velho Ávila elogiava pouco e se queixava muito. Respondia curto. Não alongava conversa, mas lhe agradava ser consultado. Se o deixassem de fora do papo, em pouco levantava e se recolhia. Agora já mostrava claros sinais da velhice que o devastava pouco a pouco. As mãos eram trêmulas, a boca ficava entreaberta, sem que assim o desejasse, os olhos não tinham mais o poder de intimidar que sempre o caracterizara. Da prepotência que trazia consigo, lhe restara o falar autoritário, mas transmitido por uma voz frágil, e entrecortada pela tosse constante.
Não se movimentava a vontade. Gostava de comandar, e isso os outros já não aceitavam, salvo em raros momentos de cortesia. Por pura indulgência perante sua figura patética de agora. Como todo tirano, ao momento em que o tempo lhe tirava as energias, via esvair-se seu poder de impor-se. E era obrigado a se contentar com a companhia silenciosa e quase imperceptível da própria esposa, com quem mantivera sempre uma relação de carinho superficial e domínio absoluto. Domínio a que ela se sujeitara em troca da vida tranqüila que passara a viver a seu lado.
Não opinava junto dele, mas impunha-se firmemente em sua ausência, como que transformada subitamente em pessoa radicalmente distinta. E voltava ao normal, em seu canto acanhado, em sua postura quase de freira, cabeça baixa, ao receber uma ordem dele, imediatamente atendida sem discussão. Assim havia sido sempre entre eles. E muitos dos parentes, mesmo os mais próximos, iriam partir para outra sem desvendar quem ela pudesse realmente ser. Era uma mulher como muitas outras de seu tempo.
A festinha de Márcio seguiu até a tardinha. Ele, homenageado, dormiu quase o tempo inteiro. Mas, mais que tudo, a festa servira para que Carla matasse a saudade dos pais e dos irmãos. Eles ficariam na fazenda por duas semanas, bebendo leite recém ordenhado, admirando o amanhecer, o pôr do sol nas cochilhas, passeando na charrete, dando uma fugida até Livramento para conhecer a fronteira com Rivera, onde metade de uma praça era Brasil e a outra metade Uruguai.
Lá, o baixinho João Flores da Cunha, como sempre um perfeito cavalheiro, acolhedor e disposto, os recebera com toda honra merecida a contra-parentes do Ávila. Voltaram para Porto Alegre de trem, com as doces lembranças dos dias passados junto de Carla e Mário, a quem amavam como verdadeiro filho.
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Mário Ávila viajara para o Rio de Janeiro. Fora tratar de negócios, convidado por um companheiro de sua turma de jogo das quartas-feiras. Carla não se agradara com sua ausência. Principalmente, porque algo lhe dizia no íntimo que, naqueles tempos confusos e truculentos, era arriscado demais circular pelo Rio. Ao chegar, encontrara a cidade atordoada. Amigos seus comentavam incrédulos sobre as prisões de intelectuais nunca suspeitos de qualquer envolvimento com o comunismo.
Ao mesmo tempo, percebiam e se manifestavam, com o devido cuidado, para fazer oposição à, na verdade, ditadura de Getúlio Vargas. Sabiam dos laços familiares que constrangiam Mário Ávila, filho que era de amigo de longa data do Presidente. E aqueles que conheciam o Velho Ávila de perto tinham a certeza de que, mesmo estando este totalmente contrário aos métodos de Vargas, por conveniência financeira, jamais se manifestaria publicamente. Passara incólume por muitas crises e revoluções. Não seria agora que se apresentaria com atitude distinta das anteriores.
Entre outras coisas do sul, Mário comentou-lhes do estado de saúde do pai, agora realmente parecendo fraquejar. Mas tinha outros compromissos. Estes, sigilosos e especialmente particulares. Fora chamado para ajudar uma pessoa que necessitava de apoio e o homem para isso, segundo seus companheiros, era ele.
À tardinha, sem alardear aos amigos que o visitaram, saiu do hotel e apanhou um táxi que o levou até Bangu. Parou na esquina de uma rua estreita e arborizada. Pagou a corrida. Pela orientação recebida seria a terceira casa a direita. Haveria um menino no portão usando um boné verde e branco. De longe o percebeu. Ao aproximar-se falou:
-Sou Mário Ávila. Estão me esperando.
O garoto nem levantou os olhos. Empurrou o portão sem tranca e o deixou seguir. A porta da casa foi aberta e Mário Correia o fez passar.
-Sente Mário. Podemos conversar logo.
E começou a descrever-lhe o que seria sua missão. Indicado por José Gay Cunha como homem confiável, incapaz de levantar qualquer suspeita, contavam com ele para retirar do Rio de Janeiro uma companheira que precisava desaparecer do alcance da polícia. Ela conseguira fugir de um hospital para onde fora levada após uma brutal seção de tortura na prisão. Ficara entre dois e três meses sob cuidados médicos para recuperar-se.
Era comunista e tinha dito isso com todas as letras, sendo interrogada pelos asseclas de Filinto Muller. A valentia lhe custara caro. Agora encontrava-se foragida, sob a proteção de outros companheiros, em lugar aparentemente seguro, mas tinham medo de serem descobertos, e do que poderia suceder com Sara - ter o mesmo destino de Olga Benário.
Mário escutava com atenção, seus pensamentos vagando por preocupação crescente. Do dia em que quase morrera junto à Usina do Gasômetro em Porto Alegre, ao momento de então, muita coisa sucedera e sua vida era bem distinta. Não era mais um jovem afoito, mas um homem casado, com filhos e um compromisso enorme com uma família grande. Muita gente dependia dele. Correia falava e Mário quase não assimilava o que ouvia. Era preciso tomar um tipo de decisão que nunca antes se defrontara. Por uma fração de tempo, que a mente não permitia avaliar, visualizou os tipos de risco que cercariam a empreitada.
Já enfrentara desafios, mas dispondo de condições de planejar seus passos de forma mais favorável. A situação, entretanto, não lhe dava margem para divagar.
-Muito bem. Estou com vocês! Devo isso ao José, e mesmo arriscando muito, não posso decepcioná-lo.
Ergueram-se os dois. No rosto de Correia transparecia a emoção incontida e o nervosismo trazido pela tensão constante. Abraçou Mário com força. Olhou-o nos olhos, respirou fundo após enxugar uma lágrima que insistia em percorrer-lhe a face e lhe disse:
-O Zé tinha razão. Você é homem de verdade. Dos nossos. Como se diz na sua terra, você é um guapo.
Apanhou seu chapéu e saíram à rua. Por quase uma hora, o táxi andou devagar, o motorista, que se percebia conhecer bem a Correia, escutando suas instruções para desviar de alguns pontos mostrados no caminho, aonde poderiam ser surpreendidos por alguma patrulha da polícia ou sofrerem o imprevisto de, reconhecidos por algum companheiro mais afoito, chamarem a atenção que não desejavam.
Haviam chegado. Ali realmente seria difícil adivinharem que alguém se escondia. O lugar era pobre e as casas pareciam abandonadas. Entraram caminhando num beco que não lhes permitia andarem lado a lado. Correia bateu à porta de um casebre. Passaram-se alguns segundos em que Mário teve a nítida impressão de estar sendo observado sem saber por quem ou de onde. A porta abriu-se. Viram-se em uma sala pequena, mas confortável, que não correspondia à aparência externa da casa. Sentaram-se frente a frente com Angélica, assim se apresentara ela. Escutaram passos vindos do corredor, do qual só percebiam a entrada devido à escuridão. A luz da sala não permitia mais que isso.
-Esta é Sara, falou Correia.
Mário ergueu-se e lhe apertou a mão sem falar. Nada lhe veio à mente que pudesse dizer naquele momento. Era uma bela mulher. Olhos grandes, lúcidos, penetrantes. Não tão alta, talvez um metro e setenta, os braços agora cruzados sobre o colo, o observava atentamente, como se quisesse adivinhar-lhe os pensamentos. Os cabelos estavam soltos, pouco passando dos ombros e eram negros como seus olhos. Tinha um quê de certeza e de violência ressentida na expressão. Recostou-se no respaldo da cadeira e cruzou as pernas.
-Então, chegou minha hora. Este é Mário Ávila. Não o imaginava assim. Você me parece refinado demais para ser um dos nossos.
Sara falava com voz calma, mas decidida. Mário não reagiu. Bem sabia que realmente causava essa impressão. De fato era um homem fino e elegante. Não poderia, mesmo que se esforçasse, mostrar-se de outra forma qualquer.
-Creio que, de agora em diante, para que possa cumprir minha missão, será mais conveniente que se acostume comigo e assuma, você também, uma postura que não a faça destoar de mim.
Ergueu-se e completou:
-Será importante que não sejamos notados e o contraste facilitaria chamarmos atenção. Assim Sara, você é que terá de esforçar-se para não parecer uma campesina ao lado do patrão.
Sara não poderia afirmar que estava surpresa com o que ouvira de Mário, mas sentia que ele merecia seu respeito. Mostrara lucidez e conhecimento da situação. Duas horas depois, já noite, Mário saia do hotel com Sara para a estação ferroviária.
Estavam cansados e tão logo se acomodaram no trem dormiram ambos profundamente. Tinham um longo caminho pela frente. Era preciso estarem atentos a tudo e uma noite bem dormida os ajudaria. No dia seguinte pernoitariam em São Paulo.
Hospedaram-se em um hotel próximo à estação. Ali dificilmente poderiam encontrar alguém que reconhecesse Mário Ávila.
Saíram para caminhar um pouco. Caia um garoa fina e insistente. Pararam em uma pequena lojinha para comprar um guarda-chuva e uma boina que Mário acomodou em Sara escondendo-lhe quase totalmente os cabelos.
-Chegue perto. Me dê o braço, disse Mário. Não esqueça que somos casados. Apenas por dois ou três dias e para os outros, mas casados.
-Mais pareço um menino com esta boina .
E Sara deixou escapar um meio sorriso. Era-lhe estranho ter um homem a seu lado a protegê-la. Há muito não se percebia, como agora, um tanto dependente do braço forte que sua mão segurava. Ergueu os olhos para Mário, bem mais alto que ela. Ele, sem demonstrar que o percebesse, olhava em frente como que a querer adivinhar o que poderiam encontrar. Passaram por algumas esquinas e a chuva apertava.
-Vamos jantar aqui, disse Mário, fechando o guarda-chuva em frente a um bar.
Virou-se à direita, colocando Sara à sua frente. Puxou-lhe a cadeira para que sentasse. Sentou-se a seu lado.
-O que você quer comer? perguntou-lhe.
A janta foi rápida. Conversaram sobre o tempo e Sara perguntou a Mário sobre sua família. Ouviu-o atentamente. Tinha a fala agradável e correta. Era objetivo, não tão diferente do quanto o sentira ao primeiro momento.
-Vamos embora Sara. Não convém ficarmos muito tempo parados. O alvo mais fácil é o que não se mexe.
Pagou a conta, deu-lhe o braço e saíram de volta ao hotel. Entraram.
-Preciso tomar um banho Mário. Terei que sair do quarto.
-É tarde e seria perigoso deixá-la só. Vou acompanhá-la até o banheiro. O espaço é grande. Você fecha a cortina e toma banho na banheira. Eu fico olhando pela janela.
-Isto é coisa de conquistador barato! Está louco se pensa que vai me olhar tomando banho. Sei me cuidar sozinha.
Mas Mário mostrou-se firme:
-Não só isso. Depois, enquanto você olha na janela, tomo banho eu. Você está sob minha guarda e assim será até o fim de nossa viagem.
Sara banhou-se rápido e se enxugou mais ligeiro ainda. Vestida, trocou de posto com Mário.
-Olhe para fora. Sou muito grande para conseguir tirar minha roupa na banheira como fez você, disse Mário enquanto desabotoava a camisa.
A cortina de plástico era fina e transparente. E Sara viu um belo homem, como talvez poucas vezes tivesse visto. Ou assim o sentia depois de tanto tempo passado sem se ver ou perceber como mulher.
Deitaram-se cada um numa cama. Sara dormiu primeiro. Mário necessitou de algum tempo para assimilar a tensão que carregava e que o obrigava a estar alerta constantemente. No meio da noite acordou sobressaltado com os gritos de Sara. Sentou-se na cama e tentou raciocinar rápido.
-Não me toquem. Não... canalhas, vocês são canalhas e bandidos...não...
Sara, sentada já quase fora de sua cama, tinha os olhos abertos, mas sem foco. Estava tendo algum pesadelo. Seus gritos eram cada vez mais altos. Mário ergueu-se e deu dois passos até ela. Levemente, quase sem fazer pressão, tocou-lhe o braço com uma mão enquanto a outra pousava em seu rosto. Ela suava frio, mexia-se muito, como que se afastando de um invisível agressor. Tentou pular e Mário a prendeu na cama.
-Calma Sara! Você está aqui comigo. Calma... Sara...Vá, acorde...
Passara um braço em torno de seus ombros e a apertava junto ao próprio peito. Finalmente, Sara encarou-o com expressão de quem volta à realidade e se sente meio perdida.
-Mário... ainda bem... estava sonhando que me torturavam... é horrível...
Recostou sua cabeça ao ombro do companheiro e chorou. Chorou muito. Depois foi se acalmando, como se, aconchegada em seus braços, tivesse se tranqüilizado. Acabou adormecendo. Mário esperou um pouco, ajeitou-a na cama e a cobriu com o lençol. Levantou-se e observou-a por alguns instantes, vendo sua respiração normalizar. Sob a camisa que improvisara como pijama, seus seios moviam-se, quase que imperceptivelmente. Estava bem. Agora podia ele dormir também. Ajeitou seu travesseiro e buscou descansar.

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