CALEIDOSCÓPIO
(As estrelas moram no céu)
Romance/Literatura Brasileira
Cunha/Victor Aronovich, 1945
Direitos Autorais Reservados,
Registro No. 138.960 Livro 222 Folha 495 Biblioteca Nacional
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Este livro é uma homenagem a uma geração de homens que fez a história de seu tempo, marcando sua trilha pela dignidade de propósitos, pela autenticidade de seus ideais, pela solidariedade universal que carregavam. Formaram, certamente, uma raça que não teve nem terá substitutos, tal a grandeza de seu espírito, a dimensão de seus sonhos, e o inseparável destemor que lhes foi companheiro. A nós caberá sempre lembrá-los, com o orgulho de podermos, quiçá, tentar segui-los, abraçando também causas maiores, na expectativa serena de esperar que a história nos reserve um julgamento justo.
De um deles, meu pai, tomei a liberdade de roubar cenas, me apropriando de fatia maior do que aquela que sempre tive o direito de carregar, qual seja seu nome. A ele, José Gay da Cunha, lutador incansável; como portador da bandeira da liberdade, com muito amor, tenho a honra de ofertar minha principal homenagem. Por tudo que nos disseste, por tudo que nos mostraste, por tudo que, mesmo calado, nos transmitiste em teu exemplo maior, por tudo que sempre foste, és e serás.
Obrigado Zé!
Dedico-o a minha mãe, Eugenia, valente e audaz, companheira na vida, na música, e nos sonhos que sempre traduziu, nas palavras e nos teclados, a meus irmãos, cuja solidariedade e carinho são marcas indeléveis que carregamos como herança de nossos pais, a meus filhos, amigos de ontem, hoje e amanhã, seus companheiros, companheiras e filhos, meus netos, aos amigos, poucos, que continuaram a caminhar comigo, e ao meu amor, Aninha, meu refúgio e verdade maior, e, por fim, àqueles que, mesmo os que não conheço, sei que lutam pelos direitos dos homens.
REMINISCÊNCIAS
Mário Ávila passeia de volta por chão que lhe é familiar e bem quisto. Margeando o Guaíba, bem ao sul de Porto Alegre, em Belém Novo, há tempos, foi construindo um recanto que lhe serve de refúgio quando deseja espairecer. Não chega a ser uma fazenda, mas ali cria um pouco de gado leiteiro, desenvolveu um pomar que lhe permite colher o suficiente para a subsistência dos empregados, produz bom leite e, em área que detém sua especial atenção, montou um haras, um pouco por influência e competição com os Krieger, seus vizinhos e amigos de longa data.
Ao contrário das vastas planícies na zona da fronteira, em Livramento, herdadas ao pai, aqui o convívio com os peões e seus familiares sempre foi menos formal, talvez porque, desde o princípio, esta tenha se transformado em sua área de experimentos e descanso. E foi aqui, entre Belém Novo e Ipanema, que os filhos foram, durante suas férias, crescendo com mais contato com a natureza, e vez por outra, convivendo com os veranistas, gente de Porto Alegre e de outras cidades, que vinham descansar e soltar os filhos um pouco da rotina do ano inteiro.
Seu pai não lhe deixou somente as posses. A estas soube ampliar, tendo agora as terras de Belém Novo e Tapes. Mas passou-lhe também um sólido, e senão isso, um tranqüilo relacionamento com o poder. Os Ávila faziam parte de um grupo que, por algum tempo, convivera de perto com o Presidente Getúlio Vargas, desde quando este fora Presidente do Rio Grande do Sul, e juntamente com os Flores da Cunha, os Silveira, os Dornelles e outros, participou intensamente da vida do país e da geração dos fatos históricos. Nem sempre tinham estado do mesmo lado, o que lhes rendera rusgas e prejuízos, mas o velho Ávila soubera manter-se distante da política, trabalhando mais nos bastidores, evitando tomar partido publicamente, por exemplo, quando Getúlio enfrentou a revolta de antigos colaboradores, aos quais alijara das decisões ou traíra nos anseios que alimentavam quando o tinham ajudado a assumir o poder da nação.
E Mário Ávila muito aprendera com seu pai. Conseguira, após sucedê-lo à frente do patrimônio da família, continuar a mostrar-se aos companheiros de sociedade e da política como um homem voltado para seus próprios negócios, mente aberta a novos empreendimentos, dono de alguns hobbies próprios de quem tem boas posses e muita cultura, o que havia conquistado com estudo em excelentes escolas e em viagens, pelo país e exterior, que nunca deixara de fazer. Quanto a sua visão política, soubera sempre resguardar-se. Mesmo em casa, no convívio com a mulher e os filhos, pouco se podia perceber-lhe nas manifestações.
Pelo que transmitia, captavam sua vasta cultura, sua preocupação em estar atualizado, mas - invariavelmente - a busca de uma posição neutra e superficial ao comentar sobre o que dissesse respeito a política ou poder.
Era um homem forte e saudável para sua idade. Aos cinqüenta e um anos bem vividos que carregava, mantinha os músculos ainda tesos, o andar rápido e marcado por bons movimentos. Praticava alguns esportes, como o tênis que muito apreciava. Esporte de não agressão, de cavalheiros, como sempre se julgara e fizera questão de demonstrar aos que com ele conviviam. Também nadava um pouco, fumante que era, para manter bons pulmões. Gostava, como o fazia agora, de andar a cavalo. Em longas peregrinações solitárias, nas quais somente o animal o escutava, admirava em detalhes o que o tempo e a natureza o haviam ajudado a construir.
O cavalo trotava ágil entre duas fileiras de seibos, árvore que Ávila trouxera para enfeitar a paisagem por sugestão de Carla, e que o tempo mostrou estava ela cheia de razão ao elogiá-la. Davam flores lindas, vermelho forte, contendo uma nesga de amarelo. Não cresciam muito, abrindo-se mais para os lados com galhos predominantemente leves, que, com o verde muito vivo de suas folhagens, formavam um quadro de admirável beleza.
Puxou os arreios obrigando o cavalo a parar. Apeou. Queria sentar por alguns instantes em um pedaço muito especial do caminho. Ali, uns metros à direita, feito em troncos, com rústico acabamento, estava o banco aonde Carla descansava e o observava enquanto ele plantava as mudas de seibo. Alisou o pescoço do cavalo, em gesto típico de quem tem intimidade com o animal, batendo-lhe de leve, com carinho mesmo, quase à altura do peito.
Prendeu os arreios, agora pendentes, a um galho baixo da árvore mais próxima. Tirou o chapéu, afagando os próprios cabelos já parcialmente grisalhos e, com as mãos na cintura, punhos cerrados, olhou em volta e respirou fundo. Soltou o ar bem lentamente.
Com o chapéu bateu nos troncos do banco como a limpá-lo. Então, sentou-se. Pernas afastadas, corpo dobrado para a frente, com os cotovelos apoiados nas coxas, olhar distante.
O ar era do mais puro. A brisa suave trazia o cheiro de natureza que tanto lhe agradava e as imagens à sua frente o ajudavam a pensar. Olhou lenta e descompromissadamente as árvores em volta.
Lembrava de cada uma ao plantá-las e de sua preocupação com o frio, as geadas e os ventos fortes do inverno. De que pudessem não desenvolver-se adequadamente ou sucumbissem mesmo.
Mas a natureza era maior e mais sábia que nosso conhecimento. Ali estavam todas, fortes e serenas, ofertando-lhe a beleza que já antes tantas vezes admirara. E se movimentavam numa dança sensual e livre, como a agradecer as mãos que as ajudaram a penetrar a terra fértil. Inevitável pensar em Carla.
Ele, vinte e dois anos, estudante de Direito, ela, dezoito, recém normalista, formada no Sevigné. Porto Alegre fervia naquele distante l923, ano agitado, em que Chimangos e Maragatos se enfrentavam em lutas sangrentas, como se novos Farrapos ressurgissem nos Pampas.
Borges de Medeiros, governador perpétuo do Rio Grande do Sul, encarava os caudilhos Republicanos, estes liderados por Flores da Cunha e Osvaldo Aranha. E nas ruas da cidade, depois do toque de recolher, quando era proibido circularem veículos , alguns caminhões, com laçadores, caçavam voluntários para formar as tropas de defesa do Governo, levados para campos de treinamento nos Corpos Provisórios, que gerariam milícias, depois agregadas à Brigada Militar.
Os jornais Federação e Ultima Hora, favoráveis ao governo e oposição, noticiavam os mesmos fatos, atribuindo vitórias de acordo com as conveniências de seus editores. Era difícil saber realmente o que se passava. A luta fraticida fazia vítimas entre o povo, manobrado e iludido por informações, muitas vezes distorcidas.
Uma tarde, em frente ao Grande Hotel, na Praça da Alfândega, caminhavam Mário e Carla, namorados, mãos dadas, junto com Joice Almeida, companheira de Carla como voluntária na Cruz Vermelha. De repente, tiros, primeiro afastados, depois mais próximos. E, antes que pudessem esboçar qualquer gesto de protegerem-se, viram Joice cair, a testa perfurada por uma bala perdida. Justo ela, uma das muitas jovens que se arriscavam para ajudar feridos de uma luta que não haviam escolhido facção.
O ano foi praticamente todo tumultuado. As coisas só acalmariam quando o Governo Federal mandou para o estado seu Ministro da Guerra, General Setembrino de Carvalho. Mas, daquele dia, algo mais ficou em Mário Ávila do que o gesto de proteger Carla empurrando-a junto à parede do Hotel e ficando a sua frente. Ficou a preocupação com os efeitos hediondos de uma luta pelo poder. O Rio Grande sangrava por suas próprias mãos.
Que gosto, que prazer insano nutriam esses líderes por tal tipo de combate? Para ele, ainda muito jovem e cheio de planos, mas de vida tranqüila e sem dificuldades, era custoso assimilar tais fatos.
Com certeza fora ali naquela tarde, que, em sua mente feita de planos férteis e expectativas serenas, despertara uma curiosidade que não o deixaria mais: por quê? E lhe veio à lembrança a imagem de Carla quando a conhecera.
Desciam, ele e alguns amigos, a ladeira da Marechal Floriano, que ia da Rua Duque de Caxias, passando pelo Colégio Sevigné, saindo na praça em frente a Demétrio Ribeiro, rua em que, junto com dois colegas de faculdade, residia, durante o ano, em uma pensão.
No meio da subida, sentido contrário, saia azul plissada, blusa branca de laço também azul preso ao colarinho, livros nos braços de encontro ao peito, vinha Carla, conversando com uma colega normalista.
Era o momento de saída da turma da manhã na tradicional escola, caracterizada pelo essezinho bordado na blusa, sobre o bolsinho do lado do coração das meninas que lá estudavam.
E ao cruzarem um com o outro, a calçada estreita, bateram levemente os braços, mas o suficiente para assustá-la e fazer cair um de seus cadernos ao chão.
De imediato, voltando-se para ela, Mário apanhou o caderno devolvendo-o. Ao fazê-lo, quando Carla estendeu a mão, prendeu-lhe os dedos por breve instante. Olhou-a bem nos olhos e, talvez influenciado pela companhia dos amigos, resolveu brincar:
-Um escravo aos pés de uma bela professorinha.
-Você não é negro. Eu não sou professora ainda, nem tão bela, e largue minha mão, falou Carla, entre assustada com o fato e consigo mesma por ter reagido tão de pronto.
Os amigos, todos eles, riram muito, enquanto Mário, entre desconcertado e arrependido, ficara sem ter o que dizer. Sabia que o Moisés Velhinho, um deles, e o mais talentoso dos estudantes com que convivia, iria depois massacrá-lo com suas provocações. Deu de ombros, não sem antes voltar-se a tempo de ver Carla dobrar a esquina.
A cena não lhe saiu da cabeça. Não era de seu feitio tomar atitudes como aquela. Que tonto fora ao sentir-se mais valente perante os próprios colegas. Passado mais ou menos uma semana, encheu-se de coragem, agora sensata, e foi postar-se em frente ao Sevigné. Tinha que falar-lhe. Ao vê-la sair, leve, pequena e frágil como parecia ser, adiantou-se:
-Quero falar-lhe. Ouça-me um minuto. Preciso me desculpar pelo que fiz no outro dia.
-Não o conheço. Deixe-me passar. Meu pai é Coronel e posso pedir-lhe que mande prendê-lo caso continue a me perturbar.
-Pois bem, disse Mário, estufando o peito à frente de Carla, ou me ouve ou vai ter que mandar me deter mesmo. Não faça com que me sinta mais idiota do que já estou me sentindo. Tenho cara de bandido?
Parecia ter vencido sua resistência. Carla deixou transparecer um meio sorriso e mostrou expressão de quem entrega os pontos, soltando um muxoxo:
-Muito bem. Fale então.
E, daquela conversa ao início do namoro, passaram-se uns poucos dias. Mário conhecera seus pais, Coronel Figueiredo e Dona Áurea, ambos afáveis, ele bem mais velho que ela. Já transferido por muitas vezes e para muitos lugares, o Coronel adquirira um conhecimento que independia de sua condição de militar. Não sabia muito bem esclarecer porque optara pela carreira, mas tinha consciência do nível de vida que vivia, acima da média, e do respeito que lhe era oferecido por todos com quanto convivia. Em uma ou outra conversa de fim de semana, deixava escapar suas mágoas com as promoções que perdera. Admitia não ter um coração de militar típico, durão, intransigente e insensível na aparência. Questionava com freqüência alguns dos métodos aplicados nos quartéis e até mesmo fora do convívio da caserna.
Ao longo dos anos, por conta de sua inegável capacidade de ouvinte atento e conciliador nas horas de conflitos, em torno de si criara a imagem de não decidir com presteza, de ser ponderado em demasia e pouco severo nos julgamentos, não carregando, portanto, o perfil necessário a um oficial de alta patente, muitas vezes detentor de segredos de estado.
Restara-lhe o conforto de ser respeitado por todos como um homem íntegro e as facilidades de que gozava após ser deslocado para um posto administrativo.
Dona Áurea era uma pessoa simples. Possuidora de boa formação cursara a Faculdade de Medicina até o terceiro ano quando, tendo se casado, abandonou seus estudos. Dentro de casa, ainda que contraditoriamente com o conceito de seu esposo nos quartéis, aceitava seu comando com naturalidade autêntica. Era uma mulher dócil no trato.
Vivia feliz e nitidamente satisfeita com o casamento, o marido e os filhos que criava. Permitia-se, em raras e íntimas oportunidades, confidenciar ao marido as possíveis discordâncias ou ressentimentos do dia-a-dia. Mesmo nessas ocasiões, sabia manter-se suave e sem agredir-lhe o moral de, em última instância, ser o dono da palavra final.
Carla era a filha do meio, tendo um irmão, então com dezoito anos e a irmã, de apenas treze. Carregara o tipo físico da mãe, delicada, feições bem traçadas, sem maior semelhança com o pai, este mais moreno de pele, expressão sempre um tanto contraída, como se lhe perseguisse uma preocupação constante.
Por vezes, observando-o, Mário se perguntava se existia um real motivo para isso, ou se, a exemplo de outros militares que conhecia, o Coronel Figueiredo adotara esse tipo de semblante como defesa, para se mostrar um forte. O futuro sogro mais lhe parecia, no tipo físico não tão avantajado, um homem sereno e suas atitudes passavam isso em certa proporção.
Um dia, muitos anos e muitas experiências de vida mais adiante, Mário iria descobrir que os homens se criam, por vezes, um personagem que os mantém como querem ser mantidos perante os seus, mesmo aqueles mais próximos, como eram a mulher e os filhos do Coronel.
Carla era uma moça simples, feliz com sua perspectiva de tornar-se professora um dia, estudando com dedicação, muitas vezes até altas horas. Por pouco dormir, volta e meia suas olheiras destacavam-se no rosto claro de olhos expressivos. Era, de certa forma, bem a moça típica dos anos vinte, criada consciente de que um dia casaria, teria filhos que iria educar e se lhe fosse possível, mais cedo ou mais tarde, trabalhar em sua profissão. Seu corpo leve, ainda que não franzino, passava um quê de fragilidade que os anos se encarregariam de mostrar verdadeira.
Pensando nisso agora, Mário Ávila se arrependia um pouco de tê-la feito esperar por tanto tempo para casarem. Na época jovem, cheio de ideais e projetos que não envolviam necessariamente a fazenda de sua família, achou mais adequado formar-se em Direito primeiro, para depois decidir o que seria de sua vida. Amava Carla sem dúvida, mas projetara uma vida a dois por mais tempo do que lhes fora permitido pelo destino.
A saudade, naquele momento, lhe era a companheira mais freqüente. Carla, a meiga e suave Carla, de presença tão leve que quase não notada, era agora uma companhia incontestável a seu lado. Sua partida e o tempo, que passava célere, abrandavam o coração de Mário Ávila mais do que ele julgara que poderia acontecer com a idade.
E sentindo que as lembranças continuavam a aflorar, deixou-se transportar até um período de seu noivado.
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Concluíra seu curso de Direito há cinco anos e iniciara suas atividades. Carla lecionava no Colégio Nossa Senhora da Glória, no bairro do mesmo nome, mas longe do Menino Deus, aonde morava com os país.
Era obrigada a fazer duas viagens de bonde para ir e duas para voltar. Achava que podiam estar casados. Noivos já há dois anos, corria l930, e Mário reencontrara parte de sua turma de Direito e alguns outros amigos mais jovens, cheios de ideais, com quem passara a conviver de forma quase constante.
Era Presidente do Estado o Dr. Getúlio Vargas. Na turma que entrava na Faculdade de Direito naquele ano, estava um dos jovens filhos de amigo do velho Ávila, Daniel Krieger, e junto com ele, José Gay da Cunha, sobrinho do General Flores da Cunha, Telmo Jobim, Mário Diffini, Luis Flores da Cunha, este filho do General e entre muitos outros, Luisa Barreto Leite, única mulher do grupo.
O Brasil servia de palco a profunda luta política. Nesta, Júlio Prestes e Getúlio Vargas se defrontavam. Um verdadeiro confronto aberto entre Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Nordeste contra São Paulo e seus aliados. Na verdade, estava em questão a continuação do domínio econômico inglês, que ainda predominava, contra a sutil penetração norte-americana, buscando novas zonas de influência. A crise mundial de l929 era sentida por toda a América do Sul.
A Aliança Liberal aglutinava líderes que, até há pouco, vinham disputando o poder no estado. Entre os mais ferrenhos defensores da luta armada para que Getúlio fosse levado ao poder, estava João Neves da Fontoura, do Partido Republicano, herdeiro político e dileto de Borges de Medeiros, que quase se eternizara no governo do estado, e junto a ele, Batista Luzardo, deputado e guerreiro do Partido Libertador, inimigo frontal do mesmo Borges de Medeiros, excepcional orador, dono de todas as características populistas tão utilizadas naquela época conturbada. A Aliança Liberal era um grupamento político de pouca ou nenhuma consistência, mas que reunira em seu bojo praticamente todos os inimigos do então Presidente Washington Luiz, inimigos também da continuidade da predominância de São Paulo no poder.
Por baixo do pano, sem preocupação com defesa das liberdades ou do voto livre, sem visar somente a transferência do poder para outro eixo que não São Paulo, um trabalho discreto, mas nítido àqueles que tivessem mais tino era percebido: organizações industriais e bancarias dos Estados Unidos davam apoio, inclusive financeiro, aos opositores do Governo.
Como é normal de suceder com os jovens, o grupo do qual Mário Ávila participava não estava imune à propaganda persistente e eficaz da Aliança Liberal. Era candidato à Presidência da República, Getúlio Vargas, político moderado, formado sob o inquestionável comando de seu líder, Borges de Medeiros. Já fora, antes de eleito para a Presidência do Rio Grande do Sul, Ministro da Fazenda e Deputado Federal.
Relutando bastante para aceitar sua indicação como candidato a Presidente da República, tinha como companheiro para vice o Paraibano João Pessoa. Não lhe era do feitio participar de lutas escancaradas de contestação ao poder. Sempre fora um político hábil nas negociações de bastidores, chegando a seus objetivos principalmente graças a manobras e acordos.
O movimento da Aliança Liberal se alastrou pelo país, tendo inclusive como tribuna de propaganda a Câmara dos Deputados e o Senado, criando circunstâncias que fizeram de Getúlio Vargas o chefe do maior movimento político popular do Brasil de até então. Com a derrota nas urnas, resultando na vitória de Júlio Prestes e as acusações de fraude eleitoral, a morte de João Pessoa, assassinado em Pernambuco, fora a gota d’água que levava a uma atitude decisiva.
O grupo que Mário Ávila integrava, tomava parte em reuniões de um setor revolucionário liderado pelo Secretário do Interior, Dr. Osvaldo Aranha, e sob o comando do tenentista Átila Salvaterra.
Pensavam estes jovens, todos entre dezenove e trinta anos, estarem diante de uma situação irreversível que os conclamava à luta armada para tentar salvar o país daqueles que, detentores do poder, nada mais respeitavam. A liberdade, o uso adequado do voto secreto, os direitos do cidadão, o respeito à Constituição, tudo tinha sido miseravelmente ignorado pelo Presidente Washington Luiz.
O povo ia para as ruas, cobrando de Getúlio uma atitude resoluta e definitiva. As passeatas pediam vingança pela morte de João Pessoa e ocupavam vários quarteirões da Rua da Praia, subindo a General Câmara em direção ao Palácio do Governo. A guarda, efetuada pelos homens da Brigada Militar, fora reforçada em todos os portões do Piratiní. Getúlio, apesar dos chamados, não deu o ar de sua presença e o povo decepcionado, desceu para o Largo do Medeiros, onde no Clube do Comércio se encontravam João Neves da Fontoura, Lindolfo Collor e o General Flores da Cunha.
Aos gritos, a multidão enchia a Praça da Alfândega em frente ao clube, pressionando para que algum de seus líderes viesse a público manifestar-se. Por fim, desceram João Neves e Flores da Cunha, dizendo em discurso breve que tudo fariam para salvar o Brasil dos usurpadores do poder. Ao mesmo tempo, vinha a informação de que Osvaldo Aranha se encontrava no Grande Hotel, a meia quadra dali. Desta feita o fantástico orador que era esse homem não se fez esperar. Da sacada do primeiro andar falou ao povo de forma franca, direta e entusiasta, como era de seu perfil. Ali surgia uma das frases mais fortes que o Brasil escutou em qualquer momento de sua história:
-Faremos a Revolução que o povo quer, com o Governo ou sem o Governo do Rio Grande do Sul a nosso favor! O Rio Grande está de pé pelo Brasil!
Sob o delírio da multidão Osvaldo Aranha, o mais querido líder, transformava-se no maior dirigente político do estado. Perspicaz, inteligente, perfeito cavalheiro, bom amigo e velho lutador, apesar da pouca idade, encarnava a chefia da Revolução já em marcha.
Seu secretário, Moisés Velhinho, exercia muita influência sobre o caudilho, devido a seu grande conhecimento histórico e impecável formação acadêmica, acompanhado também por Maurício Cardoso, outra indiscutível inteligência do movimento de l930. A revolta se iniciava, ainda que Getúlio Vargas relutasse tanto que, em Porto Alegre, todos acreditavam que ele não fosse participar da Revolução. Terminou cedendo e a data foi marcada.
Sobre o grupo, do qual Mário Ávila participava com certa ascendência, muito pesavam as opiniões de Moisés Velhinho, seu companheiro de turma na Faculdade de Direito. Na verdade, a partir disto, acontecera de Mário agora estar ligado a diversos jovens que tinham a indiscutível liderança e alguns, laços de parentesco muito próximos do General Flores da Cunha. Seus filhos e quatro sobrinhos envolviam-se ativamente nas conspirações. No dia 3 de outubro de l930, às cinco e meia da tarde, começavam a movimentar-se. Reunidos na Loja Maçônica da Jerônimo Coelho, entre a Borges de Medeiros e a Praça da Matriz, perto do Palácio do Governo, cada um recebeu um revólver 38 e uma caixa de balas.
O grupo era chefiado por Hibernon Machado e, passando pelo Palácio, já seguindo para o local de seu objetivo, no portão principal, junto de seus secretários, Getúlio Vargas lhes acenou. A marcha continuou em direção à Usina da Companhia de Energia Elétrica na ponta da cadeia, no Gasômetro. Desceram a Duque de Caxias. Próximo à Usina escutaram-se os primeiros tiros, vindos do lado em que ficava o Quartel General da 3a. Região.
A cada minuto que passava os tiros eram mais intensos. Já na Usina, alguns engenheiros americanos foram presos juntamente com o pessoal mais graduado. Sentiam-se tensos e emocionados.